Em uma turma de primeiro
ano, lá por volta de 2004, a temática era: “Histórias Infantis” onde
“Chapeuzinho Vermelho” foi o assunto da semana. Na história escolhida a
personagem optou por levar um BOLO à sua avó, então, neste dia a criançada teve
que ir à cozinha e fazer todos os preparativos para que este bolo realmente se
tornasse real. Bolo cozido, decorado e degustado. Que delícia! Hora do registo,
hora da ênfase a palavra “BOLO”. O dia passou e a ênfase da história saiu do
BOLO e foi para o LOBO. Novamente um dia repleto de atividades, dramatizações,
fantoches, pesquisas na web sobre o personagem do dia... Mas algo diferente
aconteceu...”G” (letra inicial do nome da criança) necessitou fazer um exame de
sangue e só conseguiu chegar ao colégio próximo ao recreio. O menino entrou
sorridente e dirigiu-se a sua mesa, começou a dispor seu material sobre ela e
pode-se perceber exatamente o momento em que franziu a testa. Em fração de
segundos levantou-se e dirigiu-se a professora dizendo: - Professora aconteceu
uma coisa muito estranha!
- Sério? O que ouve?
Respondeu ela...
- Ontem tinha um “bolo”
na sala e registamos a palavra bolo, hoje tem um cão e as letras dele estão
trocadas?(sic)
- Hummm, entendi! Vamos
ver se algum colega consegue lhe ajudar a desvendar este mistério...- falando
isso a professora solicitou às crianças que dessem um feedback dos
acontecimentos da aula...
“G” voltou ao seu lugar,
“mas não voltou para a aula”, rs, ele ficou imerso tentando desvendar um
mistério...A professora percebia claramente aquela boquinha se movendo e
repetindo “bolo”, “lobo”, “bolo”, “lobo”, sendo que as próximas atividades ele
também não conseguiu realizá-las, pois tomado de uma imensa busca do saber,
registava nas últimas folhas de seu caderno as palavras “bolo”,” lobo”,”bola”
seguidas de outras variáveis: “sapato”, “pato”, “sapa”, e muitas outras...
A aula do dia chegou ao
final e a criança foi embora sem nenhum registo dos acontecimentos da mesma,
mas com todos os registos que lhe ajudaram a elucidar o mistério de um bom
leitor, para esta criança foi o dia da “tomada de consciência”!
Ler e escrever para aqueles que possuem apropriação da leitura e
escrita parece algo muito simples, contudo são habilidades que requerem
dedicação e exercício constantes. A aquisição da leitura possibilita decifrar
pequenos bilhetes, bulas de remédios, instruções de manuais, textos
diversificados. Já a escrita nos permite o registo daquilo que queremos
comunicar a alguém, seja um simples “oi” em um bilhete ou alguma rede social e
até algo mais complexo como a escrita de um artigo acadêmico ou um
livro.
Entretanto, o que para alguns já está automatizado para outros há um
longo caminho a ser percorrido, trajetória nem sempre fácil, pois, para a
aquisição de tais habilidades não possuímos um aparato biológico geneticamente
programado, o que faz com que nosso cérebro se utilize de estruturas e
circuitos que ao longo da evolução se desenvolveram para desempenhar outras
funções (COSENZA; GUERRA, 2011).E além de todo este processo, ainda se faz
necessário que a criança torne consciente a automatização destes processos.
Através deste entendimento podemos inferir de que essas habilidades necessitam
ser ensinadas, requerem dedicação, exercícios para que em algum momento se
chegue a tomada de consciência de como se compõe o código alfabético, ou seja,
se faz necessário investimentos constantes, pois cada cérebro é único e depende
de estruturas cognitivas já consolidadas para que chegue a alcançar fluência na
leitura e na escrita.
Quando estamos diante de uma palavra, ela num primeiro momento é
captada pelos nossos estímulos visuais e levada pelas vias ópticas até o córtex
cerebral, do mesmo modo que ocorre com qualquer outro estímulo visual. Em se
tratando de uma palavra já conhecida do repertório do indivíduo algumas vias
cognitivas são acionadas mais rapidamente do que outras.
Pesquisas realizadas com indivíduos leitores mostram que uma pequena
região do hemisfério esquerdo situada no córtex visual é ativada quando os
mesmos se deparam com palavras escritas, sendo que essa região se interessa
pela ortografia das palavras, independente se a escrita for maiúscula ou
minúscula, cursiva ou script que visualmente seriam diferentes, mas para esta
região o input visual ocorre da mesma maneira. Esta região é conhecida como
VWFA (área da forma visual das palavras), região que serve de conexão entre a
visão das palavras e o circuito da linguagem, sendo que esta transfere
informação visual para o circuito da linguagem o qual também recebe inputs
auditivos. Esta região, VWFA, descodifica as palavras escritas e tem uma
função próxima ao reconhecimento visual de objetos e rostos. Conforme Dehaehe e
Delgado (2012, p.12), “nessa região, durante a aprendizagem, a resposta aos
rostos diminui ligeiramente à medida que a competência de leitura aumenta e a
ativação aos rostos desloca-se parcialmente ao hemisfério direito”, ou seja, há
uma reorganização do córtex visual.
O diferencial é que em analfabetos ou crianças que estão
aprendendo a ler esta região não é ativada, pois o leitor necessita ter um
automatismo da correspondência grafema-fonema para que o cérebro ative este
circuito. Leitores fluentes, ao se depararem com palavras conhecidas, ativam
esta área em menos de 150 milissegundos o que lhes proporciona a rapidez na
leitura. Entretanto, para que chegue a esta habilidade, a criança necessita ler
CORRETAMENTE UMA PALAVRA VÁRIAS VEZES. E para aqueles que trabalham com
alfabetização, ler várias vezes uma palavra, não diz respeito a uma leitura
mecânica, monótona, diz respeito a toda interação que a leitura exige, seja
através de jogo, de brincadeira de soletração, de leituras diversas, enfim, de
variáveis de leitura de modo a possibilitar a tomada de consciência de toda a
estrutura relacionada ao entorno desta palavra. Ao interagir de forma
diversificada com uma palavra a criança cria um sistema neural que reflete na
ortografia, na pronúncia e no significado da mesma.
Nesse sentido, transcrevo um trecho da última nota técnica emitida
pela Sociedade Brasileira de Neuropsicodedagogia, onde há indicativos de como
aliar os conhecimentos da neurociência com a teoria da epistemologia genética:
À luz da neurociência,
a seleção dos estímulos adequados para produzir a aprendizagem, considerando a
qualidade deles, poderá determinar a efetividade da aprendizagem do sujeito. A
percepção capturada pelo sistema nervoso periférico, levado através de corrente
elétrica ao cérebro localizado no sistema nervoso central, desencadeará um
processo de reelaboração dos conhecimentos, que até então foram compostos pelo
sujeito aprendente.
A Teoria da
Epistemologia genética diz que, nesse momento, ocorre um processo de apropriação,
que por sua vez, possibilitará a desequilibração ao que já havia sido elaborado
anteriormente pelo sujeito. Ao ocorrer a assimilação dos conhecimentos novos,
ou seja, quando o cérebro através de sua atividade reorganiza o conhecimento
adquirido por este novo estímulo, tem então, a acomodação, ou seja, uma nova
construção cognitiva elaborada.(SBNPP, 2017, p.3-4)
Leitores iniciantes que ainda não obtiveram esta nova construção
cognitiva elaborada necessitam fazer mais uso de outro sistema cerebral,
localizado na região parietotemporal, o qual faz com que o indivíduo analise a
palavra subdividindo-a e tentando relacionar a grafia da letra ao seu
respectivo som. Este processo torna a leitura um pouco mais lenta.
O que se faz necessário entender é que leitores fluentes se
utilizam de ambos processos, pois eles são acionados concomitantemente,
entretanto a bagagem de palavras construídas na área visual da forma das
palavras (VWFA) faz com que este processo seja ativado com maior velocidade de
processamento que automaticamente repercute na velocidade de processamento da
leitura. Inicialmente as palavras são percebidas como qualquer outra imagem
pelo nosso cérebro, ou seja, na área visual. Após esta entrada ocorre a
seguinte situação:
-
Se estamos diante de uma palavra conhecida a área visual da forma das palavras
é ativada com maior veemência em detrimento de outras áreas
-
Se estamos diante de uma palavra nova, a qual nunca havíamos feito a leitura da
mesma, a área fonológica é ativada é ativada com maior veemência em detrimento
de outras áreas. Porém aqui, ainda há outros dois tipos de decodificação
fonológica:
1º
- O som da palavra ligado à sua articulação: alguns leitores
para fins de análise das palavras utilizam-se da área de Broca (área responsável
pela articulação das palavras), onde eles podem subvocalizam (pronunciam em tom
baixo) as palavras enquanto leem, ou pronunciá-las em tom mais alto, ou mesmo
lê-las silenciosamente. Shaywitz (2006) informa que o processo de
subvocalização faz com que o leitor crie uma consciência da estrutura sonora de
uma palavra, uma vez que a forme fisicamente em seus lábios, línguas e cordas
vocais.
2º O
som da palavra é “ouvido através dos olhos”- aqui ocorre um processo
similar ao da percepção auditiva, mas a entrada é pela percepção visual,
ocorrendo uma fusão entre os sentidos da visão e da audição.
Após
estas etapas, ambas as vias convergem a palavra para área de Wernicke para que
seja feita a decodificação semântica (significado) da mesma.
Um fator importante do entendimento de como nosso cérebro processa
a leitura é justamente a questão da prioridade de método de alfabetização que
as escolas adotam. Como vimos, o leitor proficiente necessita ter entendimento
de tudo que compõe a estrutura de uma palavra, sendo assim, tanto métodos
fônicos são importantes quanto métodos globais. As vias cognitivas que englobam
as maiores regiões responsáveis pela leitura encontram-se nas regiões
posteriores do cérebro, regiões que recebem os estímulos visuais, auditivos,
somestésicos, situação esta que nos faz repensar quanto a metodologia de
ensino voltada à alfabetização. Os acúmulos de folhas fotocopiadas que são
utilizadas como estratégias de aprendizagem nos anos iniciais contemplam as
necessidades de atenção e motivação para que as vias sensoriais possam captar o
objeto de aprendizado?
Outro aspecto relacionado a aquisição da leitura é que ela se
mostra um aspecto importante para a escrita, mas conforme Lima
(2010) “somente a leitura não leva à escrita e uma das contribuições mais
importantes da neurociência é a explicitação de que escrever se aprende
escrevendo”.
Ensinar uma criança a ler, representa possibilidades de a mesma
fazer interpretações do mundo, porém, ensinar uma criança a escrever permite que
a mesma possa ressignificar e deixar suas marcas registadas para o mundo e
transformadas em memórias coletivas.
Referências:
LIMA, Elvira
Souza. Neurociência e Escrita. São Paulo: Inter Alia Comunicação e
Cultura, 2010.
SBNPP. Nota
Técnica 02/2017. Joinville: SBNPP, 2017. Disponível online em: www.
Sbnpp.com.br
SHAYWITZ, Sally. Entendo
a dislexia: um novo e completo programa para todos os níveis de problemas
de leitura. Porto Alegre: Artmed, 2006.
STANISLAS, Dehaene.
PEGADO, Felipe. O impacto da aprendizagem da leitura sobre o cérebro.
Revista Pátio. Ano XVI nº 61 fev/abr. p 11-13. Porto Alegre: Artmed, 2012.
(1) Especialista em
Alfabetização, Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva, Neuropsicopedagogia
Clínica e Neuroaprendizagem. - whatsApp - 51 99248-4325
Como fazer a citação
deste artigo:
QUINTA-FEIRA, 3 DE AGOSTO DE 2017
Com a adaptação de algumas palavras ao português
europeu