Esta
entrevista, dada à revista online brasileira Aprendaki, encontra-se escrita no português do Brasil.
José Morais é professor de psicolinguística e
diretor da Unidade de Pesquisa em Neurociências Cognitivas, da Universidade
Livre de Bruxelas, presidente do Comitê das Ciências Psicológicas da Academia
Real da Bélgica e membro do comitê científico do Observatório Nacional da
Leitura em França. Autor de "A arte de ler" (publicado em França e
traduzido no Brasil, Portugal e Espanha), escreveu inúmeros artigos científicos
sobre a aprendizagem da leitura e foi corredator do relatório "Alfabetização
infantil: Os novos caminhos" (Senado Federal, Brasília, 2003). Deixou
Portugal quando tinha 25 anos (1968) devido à situação política da época.
Desde, então, mora na Bélgica onde se especializou em psicologia. Nesta
entrevista o pesquisador comenta as características do leitor hábil, as razões
que impedem um indivíduo de sê-lo e fala, ainda da pesquisa psicolinguística na
Europa e no Brasil. O pesquisador esteve por um ano e meio na Universidade
Federal de Santa Catarina, estudando o tema com pesquisadores
brasileiros.
Aprendaki
– Sua pesquisa se situa na aprendizagem?
José Morais
– Minha pesquisa iniciou-se com o estudo
dos hemisférios do cérebro. Fiz minha tese de doutorado sobre o assunto. Depois
disso, interessei-me pela leitura e em particular, pelo aprendizado da leitura.
E no caso da leitura, me interessei pelas habilidades fonológicas. O problema
da aprendizagem da leitura vai para além das habilidades fonológicas. Em
relação com a leitura, estudei a percepção da fala e a maneira como as
representações ortográficas que nós temos podem influenciar a percepção da
fala. Estudamos também a percepção da música.
Aprendaki
– A partir de seus 30 anos de pesquisa sobre o assunto na Europa e conhecendo
um pouco do Brasil, como comparar o leitor hábil de lá e daqui?
José Morais
– No Brasil, há pesquisadores
trabalhando na mesma linha e em alguns até trabalharam comigo. A razão pela
qual estive por um ano e meio na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis,
é que eu já colaborava com a Leonor Cabral. Temos experimentos e artigos
juntos. Eu diria que esses problemas que estudamos na Europa, seja em Portugal,
Bélgica ou Espanha, são problemas universais. No Brasil, eles se colocam
também. A Universidade Federal de Belo Horizonte trabalha também muito bem
nessa linha. Eu diria que deveria haver mais, porque no Brasil há uma espécie
de imperialismo de uma corrente que se chama construtivista e que tem pouco
conhecimento científico. Na verdade, se funda em teorias que foram importantes
numa época, mas que atualmente perderam a importância porque o trabalho
experimental mostrou que na realidade não tem essa importância que se julgava.
Eu acredito nos fatos, nos dados experimentais quando são bem construídos, e
portanto, bem analisados. Eu desconfio das afirmações baseadas em impressões e
intuição. Toda as nossas intuições devem passar por um exame experimental. A
partir de uma hipótese, criamos uma situação que vai nos permitir dizer se a
hipótese é boa ou não. A psicolinguística, atualmente se desenvolveu muito, justamente
porque ela seguiu esse método científico. E os resultados disponíveis permitem
fazer pensar que essa corrente do construtivismo que é baseada nas ideias do
Piaget – que foi um grande psicólogo do desenvolvimento, mas trabalhou em uma
outra época e as coisas não param, atualmente não tem base científica - aquilo
que dizemos hoje, provavelmente, será dito diferente ou até melhor no futuro,
ou quem sabe até desdito.
Aprendaki
– O que define o leitor hábil?
José Morais
– Chamamos de leitor hábil, em geral, o
leitor adulto, normal. Quer dizer, que lê com fluência. Não é que seja um
mestre em leitura, como dizemos para um mestre em xadrez. Ele não tem nada em
particular. Todos somos leitores hábeis no sentido que não temos dificuldade em
ler, que lemos rapidamente com fluência, lemos bem, identificamos bem as
palavras, extraímos bem o significado dos textos, construímos uma boa ideia do
que está contido nos textos. Isso é um leitor hábil.
Aprendaki
– O que impede a existência do leitor hábil?
José Morais
– Há muitas razões para que o individuo
não seja um leitor hábil. A primeira razão pode ser que ele não teve a
oportunidade de aprender a ler, apesar de ter as capacidades cognitivas.
Segunda razão pode estar relacionada às dificuldades especificas, particulares,
como por exemplo, dificuldades fonológicas, o que compromete o aprendizado da
leitura. Outra razão é não ter tido condições sociais, socioculturais que lhe
permitisse fazer essa aprendizagem. Pode também ter razões sensoriais no
sentido de que um surdo terá mais dificuldades. Mesmo um cego pode se tornar um
ótimo leitor hábil, mas com a leitura braile. Pode ainda haver razões afetivas.
Há crianças que tem problemas afetivos graves que não se identificaram com os
pais- -leitores ou outros parentes leitores e que acham que detestam ler. Isso
acontece por falta de identificação ou de má-identificação. E finalmente, pode
haver aqueles que têm lesões cerebrais ou que vierem a ter alguma lesão
cerebral, o que vai afetar na sua situação de leitor hábil. Tem havido estudos
com pacientes que sofreram lesões, em classificados e as categorias em que são classificados
estão correlacionadas com as estruturas.
Aprendaki
– Que metodologias podem ajudar no desenvolvimento do leitor hábil?
José Morais
– Na aprendizagem da leitura, tem se
estudado as condições, as capacidades cognitivas, perceptivas que permitem a
alguém se tornar um leitor hábil. Além disso, tem se feito estudos de
avaliação, dos resultados obtidos pelos alunos que aprendem de acordo com
métodos de ensino diferente. Houve outros estudos, em que em pequena escala, se
faz treino das crianças que estão aprendendo a ler ou que estão com
dificuldades e durante algumas semanas, até meses, vai se submetendo-as a
sessões de treino. Essas crianças que tiveram esse treino são comparadas com
outros tipos de treino. O grupo de crianças são os mais semelhantes possíveis,
como sexo, idade, para que se possa comparar e ter a certeza que se há uma diferença
depois, é devido àquela diferença de treino que elas tiveram. Os resultados
mais sólidos para falar sobre as diferenças dos métodos é justamente esse tipo
de estudo. O trabalho tem de ser longitudinal no sentido de averiguar todo o
processo, o que exige disposição das equipes e apoio da escola. E ainda mais:
exige meios para se levar essa pesquisa por um longo tempo. Há resultados muito
interessantes.