quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

José Morais - A leitura


Esta entrevista, dada à revista online brasileira Aprendaki, encontra-se escrita no português do Brasil.

José Morais é professor de psicolinguística e diretor da Unidade de Pesquisa em Neurociências Cognitivas, da Universidade Livre de Bruxelas, presidente do Comitê das Ciências Psicológicas da Academia Real da Bélgica e membro do comitê científico do Observatório Nacional da Leitura em França. Autor de "A arte de ler" (publicado em França e traduzido no Brasil, Portugal e Espanha), escreveu inúmeros artigos científicos sobre a aprendizagem da leitura e foi corredator do relatório "Alfabetização infantil: Os novos caminhos" (Senado Federal, Brasília, 2003). Deixou Portugal quando tinha 25 anos (1968) devido à situação política da época. Desde, então, mora na Bélgica onde se especializou em psicologia. Nesta entrevista o pesquisador comenta as características do leitor hábil, as razões que impedem um indivíduo de sê-lo e fala, ainda da pesquisa psicolinguística na Europa e no Brasil. O pesquisador esteve por um ano e meio na Universidade Federal de Santa Catarina, estudando o tema com pesquisadores
brasileiros.

Aprendaki – Sua pesquisa se situa na aprendizagem?

José Morais  Minha pesquisa iniciou-se com o estudo dos hemisférios do cérebro. Fiz minha tese de doutorado sobre o assunto. Depois disso, interessei-me pela leitura e em particular, pelo aprendizado da leitura. E no caso da leitura, me interessei pelas habilidades fonológicas. O problema da aprendizagem da leitura vai para além das habilidades fonológicas. Em relação com a leitura, estudei a percepção da fala e a maneira como as representações ortográficas que nós temos podem influenciar a percepção da fala. Estudamos também a percepção da música.

Aprendaki – A partir de seus 30 anos de pesquisa sobre o assunto na Europa e conhecendo um pouco do Brasil, como comparar o leitor hábil de lá e daqui?

José Morais  No Brasil, há pesquisadores trabalhando na mesma linha e em alguns até trabalharam comigo. A razão pela qual estive por um ano e meio na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, é que eu já colaborava com a Leonor Cabral. Temos experimentos e artigos juntos. Eu diria que esses problemas que estudamos na Europa, seja em Portugal, Bélgica ou Espanha, são problemas universais. No Brasil, eles se colocam também. A Universidade Federal de Belo Horizonte trabalha também muito bem nessa linha. Eu diria que deveria haver mais, porque no Brasil há uma espécie de imperialismo de uma corrente que se chama construtivista e que tem pouco conhecimento científico. Na verdade, se funda em teorias que foram importantes numa época, mas que atualmente perderam a importância porque o trabalho experimental mostrou que na realidade não tem essa importância que se julgava. Eu acredito nos fatos, nos dados experimentais quando são bem construídos, e portanto, bem analisados. Eu desconfio das afirmações baseadas em impressões e intuição. Toda as nossas intuições devem passar por um exame experimental. A partir de uma hipótese, criamos uma situação que vai nos permitir dizer se a hipótese é boa ou não. A psicolinguística, atualmente se desenvolveu muito, justamente porque ela seguiu esse método científico. E os resultados disponíveis permitem fazer pensar que essa corrente do construtivismo que é baseada nas ideias do Piaget – que foi um grande psicólogo do desenvolvimento, mas trabalhou em uma outra época e as coisas não param, atualmente não tem base científica - aquilo que dizemos hoje, provavelmente, será dito diferente ou até melhor no futuro, ou quem sabe até desdito.

Aprendaki – O que define o leitor hábil?

José Morais  Chamamos de leitor hábil, em geral, o leitor adulto, normal. Quer dizer, que lê com fluência. Não é que seja um mestre em leitura, como dizemos para um mestre em xadrez. Ele não tem nada em particular. Todos somos leitores hábeis no sentido que não temos dificuldade em ler, que lemos rapidamente com fluência, lemos bem, identificamos bem as palavras, extraímos bem o significado dos textos, construímos uma boa ideia do que está contido nos textos. Isso é um leitor hábil.

Aprendaki – O que impede a existência do leitor hábil?

José Morais  Há muitas razões para que o individuo não seja um leitor hábil. A primeira razão pode ser que ele não teve a oportunidade de aprender a ler, apesar de ter as capacidades cognitivas. Segunda razão pode estar relacionada às dificuldades especificas, particulares, como por exemplo, dificuldades fonológicas, o que compromete o aprendizado da leitura. Outra razão é não ter tido condições sociais, socioculturais que lhe permitisse fazer essa aprendizagem. Pode também ter razões sensoriais no sentido de que um surdo terá mais dificuldades. Mesmo um cego pode se tornar um ótimo leitor hábil, mas com a leitura braile. Pode ainda haver razões afetivas. Há crianças que tem problemas afetivos graves que não se identificaram com os pais-    -leitores ou outros parentes leitores e que acham que detestam ler. Isso acontece por falta de identificação ou de má-identificação. E finalmente, pode haver aqueles que têm lesões cerebrais ou que vierem a ter alguma lesão cerebral, o que vai afetar na sua situação de leitor hábil. Tem havido estudos com pacientes que sofreram lesões, em classificados e as categorias em que são classificados estão correlacionadas com as estruturas.

Aprendaki – Que metodologias podem ajudar no desenvolvimento do leitor hábil?


José Morais  Na aprendizagem da leitura, tem se estudado as condições, as capacidades cognitivas, perceptivas que permitem a alguém se tornar um leitor hábil. Além disso, tem se feito estudos de avaliação, dos resultados obtidos pelos alunos que aprendem de acordo com métodos de ensino diferente. Houve outros estudos, em que em pequena escala, se faz treino das crianças que estão aprendendo a ler ou que estão com dificuldades e durante algumas semanas, até meses, vai se submetendo-as a sessões de treino. Essas crianças que tiveram esse treino são comparadas com outros tipos de treino. O grupo de crianças são os mais semelhantes possíveis, como sexo, idade, para que se possa comparar e ter a certeza que se há uma diferença depois, é devido àquela diferença de treino que elas tiveram. Os resultados mais sólidos para falar sobre as diferenças dos métodos é justamente esse tipo de estudo. O trabalho tem de ser longitudinal no sentido de averiguar todo o processo, o que exige disposição das equipes e apoio da escola. E ainda mais: exige meios para se levar essa pesquisa por um longo tempo. Há resultados muito interessantes.